22.8.11

Da janela do quarto do apartamento

procuro por diferenças numa sociedade ortodoxa e complicada. Estou de férias. Não podemos fechar as persianas porque é ilegal. Preparo as pernas para passear numa das maiores cidades do mundo. Só posso fumar na varanda e é obrigatório tirar os sapatos à entrada do apartamento. Um espaço livre. 

 agosto de 2011

27.7.11

Quem merece os milagres?

Mas, o que é um milagre? Ocorrem-me duas definições. Algo que tem uma probabilidade nula de acontecer, ou seja, tem uma probabilidade menor do que aquela de encontrar um cacto a fumar uma ganza no planeta anão plutão à sombra duma TV guia gigante. A outra definição é aquela que envolve algo que não se consegue explicar, nem à luz da teoria M com as suas 11 dimensões e os seus infinitos universos paralelos. Diga-se de passagem que a teoria M, a teoria do Tudo, encontra explicação para o tal cacto fumador de ganzas. A verdade é que algo que não se consegue explicar não tem probabilidade nula de ocorrer, a nossa ciência é que não dispõe dum modelo cientifico para o descrever. Logo, a verdade, tal como a conhecemos, depende apenas do modelo cientifico que utilizamos para viver. Tirando uma outra aplicação mais tecnológica, as velhinhas leis de Newton servem para explicar a maior parte das coisas que nos acontecem. Agora imaginem que mostrávamos um GPS ao Newton. Milagre! - diria ele. Isto porque na altura dele ainda se estavam a dar os primeiros passos em electromagnetismo (ondas e tal), nem havia a correcção da relatividade (sem ela, o GPS falhava por alguns quilómetros). A partir da minha segunda definição de milagre, parece-me óbvio que há uma quantidade enorme de milagres no passado quem hoje em dia seriam facilmente explicados e como tal, perderiam o titulo de milagre. Por tudo isto, prefiro a primeira definição, a da probabilidade nula, mas nula mesmo. Parece-me mais abrangente, apesar dessa probabilidade depender ela também dum modelo cientifico.
Quem merece os milagres? Quem acredita neles.

14.10.10

A perfeição da felicidade

"Um dia,
quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços,
a tua pele será talvez demasiado bela e a luz
compreenderá a impossível compreensão do amor.
Um dia,
quando a chuva secar na memória,
quando o inverno for tão distante,
quando o frio responder devagar
com a voz arrastada de um velho,
estarei contigo e cantarão pássaros
no parapeito da nossa janela, sim,
cantarão pássaros, haverá flores,
mas nada disso será culpa minha,
porque eu acordarei nos teus braços
e não direi nem uma palavra,
nem o princípio de uma palavra,
para não estragar a perfeição da felicidade."

José Luís Peixoto

(n.d.a. - texto lido no meu casamento)

7.6.10

Vá para fora lá fora

São Francisco, Los Angeles, Madrid, Salamanca, Valladolid, Burgos, Bilbau, San Sebastien, Biarritz, Bordéus, Paris, Bruxelas, Antuérpia, Roterdão, Haia, Amesterdão, Colónia, Milão, Génova, Monte Carlo, Marselha, Barcelona, Lyon, Toulouse, Alpe d'Huez, Tignes, Val Thorens, Meribel, Genebra, Avignon, Grenoble, Annecy, Estrasburgo, Friburgo, Basileia, Zurique, Berna, Turim, Hamburgo, Londres, Roma, Helsínquia, Turku, Tallin, Cannes, Nice,  Dunquerque, Werchter, Montpellier, Tóquio, Quiberon, Bogotá, Medellin, Lausanne, Cardiff, Oslo, Lillehammer, Trondheim, Bodo, Sevilha, Lille, Bardoneccia, San José (Costa Rica), Chamonix, Copenhaga.

31.3.10

Da janela do quarto de hotel

tentava ver animais exóticos ou se um coco sucumbia à gravidade. O Nicolas, o Antoine e a Elodie estão à espera que acabe de fumar o meu cigarro para ir jogar às cartas com eles. Um viajante!
janeiro de 2010

30.3.10

Religião atómica

Aqui há uns tempos estive a fazer uma experiências num acelerador de partículas que era o maior da Europa na altura. Consegui ver com os meus olhos que a mecânica quântica afinal sempre se manifestava. Sempre pensei que era uma grande abstracção do Einstein, Schrödinger, Feynman e companhia. Mas quando vi que afinal havia umas ondas nos meus espectros de absorção comecei a duvidar do Newton e do Maxwell. Segundo a mecânica clássica, o pico de absorção devia atenuar-se e ponto. Não devia andar para ali a ondular. Mais convencido fiquei quando fiz a transformada de Fourrier e vi que afinal andavam para ali outros átomos a interferir com o meu átomo. Fantástico! Reconheço que necessitei de 20 anos de matemática e uns 10 de química para conseguir perceber e aplicar operadores hamiltonianos de interferência à equação de Schrödinger resolvida para o molibdénio. Moral da historia, confirmei a velha máxima do ver para crer. Agora, aparece o bosão de Higgs na historia. Aqui ao lado da terra onde eu moro andam a ver se apanham essa partícula sacana num acelerador que é tão grande que atravessa dois países. Como diria o meu irmão: vê lá tu que no outro dia ia atropelando um bosão de Higgs no IC19... Parece que esse bichinho é a prova que falta para validar o modelo padrão. O que não aparece nas noticias é que esse modelo apenas considera 3 forças, esquecendo aquela que é impossível de ignorar: a gravidade. Ou seja, anda tudo maluco à procura dum bosão que provavelmente vai mostrar que o modelo padrão está errado. Juntando uma dimensão teo-filosofica, os tipos da física até lhe chamam a partícula de Deus, vá-se lá saber porque. Apesar de estar completamente em desacordo com esta nomenclatura, ao menos fez-me pensar no nascimento duma nova religião, a religião atómica. Isto porque a definição de religião é acreditar numa cena sobre a qual não há provas nenhumas. Estaremos a assistir à génese duma fé atómica? Ao menos, esta fé é regida por equações e não por orações alegóricas! Por outro lado, se não acreditarmos em Deus vamos para o inferno. Se não acreditarmos na partícula de Higgs podemos ser engolidos por um buraco negro.

5.2.10

O ponteiro dos minutos do relógio da cozinha

Hoje reparei que o ponteiro dos minutos do relógio de cozinha desce mais rápido do que sobe, vitima da gravidade. Sendo assim, os primeiros trinta minutos passam mais depressa do que os restantes minutos. Estranhamente, um compensa o outro e ao final do dia o relógio não atrasa. São interessante as voltas do tempo.

27.7.09

Esqueci-me que afinal não tinha esquecido

Memória de peixe ou de elefante?

14.6.09

As letras do seu nome

Adoro as letras do seu nome. Deixo-me embalar pelas silabas encantadas e pelos fonemas harmónicos dos seu nome. Adoro os traços da grafia do seu nome. Adoro o som e o cheiro daquela palavra, daquele nome. Adoro todas as letras do seu nome.

18.3.09

Reflexão com sumo

- Sinto-me culpada! Foi o que ela disse depois de comprar uma máquina de lavar loiça e uma grande televisão. Ela nunca tinha tido uma máquina de lavar loiça e fazia já dois anos que a sua minúscula televisão tinha funcionado pela última vez. - Eu a sucumbir ao consumismo com tanta gente que precisa de dinheiro para alimentar a sua família até ao fim do mês. Prontamente a confrontei com uma frase curta que adoptei do meu irmão: Qualidade de vida. E aqui iniciámos uma ligeira reflexão sócio-filosófica. O seu sentimento de culpa vinha do fundo da sua generosidade e daquilo que alguns chamam de consumo responsável. É o mesmo principio que a leva a comprar produtos artesanais, de agricultura biológica ou de comercio equitável. Concordo perfeitamente com o conceito de consumo responsável, apesar de não o praticar, mas recuso sentir-me culpado por consumir de um modo não responsável. Sei que nem todos temos as mesmas oportunidades, sei que se calhar tive mais sorte na vida que outros, mas também sei o que custou esculpir o meu caminho. Entrar em comparações sobre o quanto custa ou não lutar pelo nosso lugar ao sol parece-me um exercício desprovido de sentido. Para mim o importante é a ambição de cada um e a força de vontade que se tem para continuar a remar em contra-corrente. Neste ponto sou perfeitamente egoísta (ou não, ao leitor de julgar). Estou a usufruir do estilo de vida que decidi construir para mim.

10.3.09

A caixa negra

Será que algum dia o homem vai substituir a máquina?
Este é o paradigma premente para o século XXI.

23.9.08

Da janela do quarto da minha amiga

discutimos religião e entrelaçamos o tempo. A Samira e a Sara desafiam-se dançando as suas culturas. Estou à janela porque não posso fumar dentro de casa. Um espaço livre!
maio de 2004

4.8.08

Sol d'outrora

Sempre que saía da minha terra reparava que existia um sol amarelo bem no alto do céu. Quando ia para ao pé da praia e especialmente ao fim da tarde, o sol ficava maior e sarapintado de cor-de-laranja. Já na terra da minha avó ele parecia-me mais pequeno e mais sujo, como se o amarelo radioso passasse a amarelo sujo. Para mim fazia todo o sentido haver sois diferentes. Isto porque as pessoas das outras terras falavam de maneiras diferentes, guiavam carros diferentes, brincavam em jardins diferentes e jogavam outros jogos que eu não conhecia. Claro que punha a hipótese de haver um só sol mas cada vez que o olhava ele fazia-me doer os olhos. Não podia memorizar as suas formas, ele defendia-se como se se sentisse atacado. Para mim fazia todo o sentido haver sois diferentes. Não conseguia imaginar uma forma de responder à minha questão. Mesmo que o seguisse durante o caminho até à minha casa havia sempre um ou outro obstáculo que se interpunha entre mim e o sol que estava a seguir. Por isso nunca tinha a certeza absoluta. Até quando fui de avião para a ilha da minha mãe, quando voávamos por cima das nuvens, o sol era diferente, era ainda mais brilhante. Ainda por cima ele nascia e morria no mar e a horas diferentes daquelas que eu estava habituado. Para mim fazia todo o sentido haver sois diferentes. Um dia reparei que a sua irmã, a lua, também se erguia no topo do céu de todas as terras apesar de às vezes não aparecer. A lua só aparecia quando lhe apetecia. Mesmo assim, sabendo que era caprichosa, decidi segui-la do parque de campismo, noutra terra, até à minha terra. Nesse dia, quando chegámos a casa, estava triste. Tinha encontrado a resposta. Só havia uma lua. Só havia um sol. Para mim fazia todo o sentido haver sois diferentes. Estava errado.

29.6.08

A rapariga das piruetas

Em cada pedaço de tempo que separava os pontos das diferentes equipas, ela dava uma pirueta. Em cada pedaço de tempo onde a vida abrandava, ela dava uma pirueta. Em cada pedaço de tempo desprovido de interesse, ela dava uma pirueta. Decorava o seu rosto com um rasgado sorriso e dava uma pirueta. Até nas fotografias para mais tarde recordar, ela estava a fazer uma pirueta. As suas piruetas eram leves, elegantes e repletas de energia positiva. Cada pirueta coloria com um pouco mais de alegria as expressões cinzentas que enchiam aquele velho ginásio. Não sei em mundo rodopiava aquela rapariga, mas em cada pirueta, em cada sorriso, em cada gesto inocente, perdia-me nas suas voltas. Gostava de saber qual era o seu segredo. Gostava de saber onde ia ela buscar o êxtase para contaminar todos aqueles que se perdiam nas suas voltas. A rapariga das piruetas não parou o dia inteiro. A rapariga das piruetas parecia feliz.

23.6.08

Uma Casa na Escuridão (excerto)

" Na escuridão absoluta, a escuridão absoluta. Na escuridão, o silêncio. O frio. O medo de qualquer coisa desconhecida. E o tempo era o rio lento, negro, frio, que levava consigo o tempo de quem perdeu tudo. Eu sentia que morria devagar. A minha vida, a minha morte, era arrastada por esse rio de vozes que gritavam e escuridão em todos os lugares. Mas o tempo. O tempo. O tempo existiu até ao momento em que a casa se ergueu brilhante na noite do mês da noite. O cheiro a fumo. O som da madeira a crepitar sob as chamas. A casa ardia com chamas que a envolviam, como um farol na noite do mundo. Havia chamas que brilhavam no fundo do corredor. Através da porta aberta, eu via a sua luz reflectida nas paredes brancas. Os gatos, subitamente iluminados, continuavam a mudar de lugar com a mesma lentidão. Alguns continuavam a dormir um sono antigo. As chamas chegaram à porta do meu quarto e envolveram-na. Arderam durante instantes. Os meus olhos viam a porta arder, os tapetes a arder no chão, as vigas as arder no tecto. Os móveis do quarto ardiam. A janela, diante do meu rosto, ardia. Chamas pequenas subiam pelos pés da cama. Os meus olhos viam. (...)"

José Luis Peixoto

20.6.08

As notas das emoções

Sempre gostei muito do si menor, não sei porquê. Se o Bach dizia que a dor de dentes ecoava na sua cabeça um mi maior, eu digo que as canções com mais emoções têm a um determinado momento um si menor.

Da janela da cozinha da minha avó

eu via o castelo. Estou com o Michael e mais uma boa parte da família da minha mãe. Estou à janela porque não posso fumar dentro de casa. Para ver o castelo tinha que olhar para o sítio certo. Continua um livro aos poucos. Um viajante. Uma biografia filosófica. Um espaço livre!


abril de 2003

16.6.08

Melodia

Levava na mochila seis cervejas, um bloco para rabiscos, uma caneta e um maço de cigarros. Na mão esquerda levava a guitarra. Sentia-me particularmente leve e bem comigo mesmo. Sentia-me a melhor pessoa deste mundo, dos outros mundos e dos seus arredores. Sentia-me imune às vicissitudes do desenrolar da vida. Caminhava ao ritmo do meu metronomo interior assíncrono enquanto procurava um poiso para existir no meio do parque da cidade. O dia ofereceu-me uma bela tarde de principio de verão cheia de céu azul, de passaritos a chilrear e duma tranquilidade impar. No meio duma clareira encontrei o meu poiso para existir. Saquei da guitarra e dos meus dedos começar a sair notas atrás de notas. Em paralelo, esboçava umas letras para canções alternadas por rabiscos de arvores, bancos de jardim e detalhes pelos quais me enamorava. Pouco depois, chegavam os meus amigos. Tal como lhes tinha pedido, apenas tinham trazido alegria. Não necessitávamos de mais nada. Passámos a tarde a cantar ao som de notas entrelaçadas, sorrisos vincados e cumplicidades desenhadas. No meio duma clareira encontrei o meu poiso para existir. Tinha descoberto a melodia.

24.2.08

12 palavras

Sonho, diferente, pergunta, reacção e adrenalina. Estúpido, viagem, castiço, amorfa e chabaçar. Pão e saudade.

20.2.08

Aprender

a viver. A perder e a ganhar. A lutar e a viajar. A olhar, a observar, a sentir e a sorrir. Aprender a viver. A sonhar. A gostar, a apreciar e a mimar. A repousar, a construir e a divergir. Aprender a viver. Até ao fim.

5.10.07

Da janela do quarto do meu amigo

namoro a rua. Estou com o Rodrigo e o Manoel. Estou à janela porque não posso fumar dentro de casa. Começou um livro aos poucos... um viajante... uma biografia... um espaço livre.
março de 2004

2.10.07

Metáfora do Destino

"Sem querer parecer desiludido,
Ou alguma vez “bestializado”,
Pelas tramas a que me sujeitaram
Pelas armadilhas que me pregaram
Pelas veias que me cortaram,
Minhas artérias implodiram
E sem deixar rasto...
...o meu destino se traçou...

...Se Deus algum dia escreveu direito por linhas tortas, poderei eu dar-me ao luxo de cometer tal loucura, e torcer as linhas que Deus escreveu, para que lá eu possa escrever torto!? E sem me transformar numa alma pecaminosa, ditarei eu próprio o meu passado, construirei eu mesmo o meu presente...e desejarei que tu faças parte do meu futuro...

Arrancando as chagas a Jesus
E tocando doze badaladas num só sino,
Substituo Deus na cruz
E sou Senhor do meu destino.

Pelo exagero que aqui cometi
Peço desculpa e faço vénias.
Luzes psicadélicas!!!!!
Atritos de neon!!!
Olho o céu...junto as estrelas
Invoco Orion,
E, proponho-lhe um brinde,
Com um copo atestado de um qualquer licor...
Com um pico de amargura.
Olho-o nos olhos e desafio-o:
- Devolvo-te o teu ódio,
Se me devolveres a minha ternura.
...negócio ao qual sucumbiu e recusou.
Proponho-lhe então novo brinde,
Com um copo atestado de whisky do mais fino:
- Dar-te-ei a minha vida,
Se me devolveres o meu destino.
Espantado...brindou a mim
E, sem dúvida nem rancor,
Deu-me o que era meu
E assistiu sorridente ao meu fim..."

Guilherme Rebelo

27.9.07

Outro tempo

O passado é mimado e recortado. O futuro é inevitavelmente sonhado. O presente deve ser afagado.

19.9.07

Os meus números pares

0 2 4 6 8 ... foi assim comecei uma das maiores aventuras da minha vida. Abria o estojo, tirava as canetas azul, verde e vermelho. Abria o caderno e lá me embriagava nos meus números pares. Lembro-me que tinha escolhido os números pares apenas porque era demasiado impaciente para esperar pela exasperante marcha dos números inteiros. Achava-os muito lentos, os números pares eram melhores, avançavam ao dobro da velocidade. Respeitava meticulosamente o quadriculado do caderno. Cada algarismo só podia ocupar uma casinha e o número seguinte ficava na coluna abaixo. Cada coluna estava espaçada de uma casinha da coluna ao lado. Haviam vários aliciantes. Como escrevia a caneta não me podia enganar. Quando isso acontecia, abria os agrafos que compunham o caderno, atirava a folha inteira para o lixo e recomeçava. Quando já tinha passado do meio do caderno, não tinha alternativa, não me podia enganar. Quando chegava às centenas, as casinhas onde escrevia estes números perfeitos tinham direito a um contorno vermelho. Os milhares, os meus preferidos, eram escritos a verde e as suas casinhas eram contempladas com um bonito contorno azul. No dia em que cheguei aos 10000 tive um problema. Não sabia como destacá-lo. Nesse dia decidi ir vasculhar a gaveta do escritório do meu pai à procura de uma solução. Finalmente, roubei-lhe a caneta amarela fluorescente. Era o mínimo que podia fazer por esse marco histórico. Claro que continuava a jogar à bola, a andar de skate ou fazer os meus deveres. Mas sempre que podia, abria o caderno e lá me embriagava nos meus números pares. Como os cadernos tinham exactamente o mesmo número de quadriculas por página, comecei a reparar nos padrões. Sabia sempre em que número ia acabar essa página ou quantas páginas me faltavam para poder escrever um número a verde e contorná-lo a azul. Quantos mais padrões descobria, mais vontade tinha de continuar e de descobrir outros. Essa era a minha motivação. Sabia quais eram o números que apareceriam no final de cada coluna. Sabia de quantas linhas diferiam as centenas em colunas diferentes. Sabia quando ia chegar a excepção onde não estaria nenhuma casa contornada a vermelho numa coluna. Apesar de já ter aprendido na escola que os números eram infinitos, não tencionava parar. Abria o caderno e lá me embriagava nos meus números pares. Um dia parei. Tinha preenchido 2 cadernos A5 e o terceiro ficou a meio. Afinal, os meus números pares eram finitos. Eram 56300.

17.9.07

As pequenas coisas

Eram os pequenos momentos, as pequenas decisões, as pequenas alegrias e as pequenas empatias. Eram as pequenas torturas, os pequenos diálogos, os pequenos prazeres e os pequenos afazeres. Eram os pequenos azares, os pequenos achados, os pequenos petiscos e os pequenos rabiscos. Eram as pequenas ilhas, as pequenas viagens, as pequenas maldades e as saudades.

17.6.07

A minha pequena nuvem branca

Estava sentado na minha pequena nuvem branca. Como todas as outras nuvens, a minha pequena nuvem branca suspendia-se graciosamente no imenso éter celeste. Como todas as outras nuvens, a minha pequena nuvem mudava constantemente de tamanho e os seus contornos seguiam uma qualquer lei aleatória. A minha pequena nuvem era fofinha, como todas as nuvens o devem ser, era também confortavel e revigorante. Nela recuperava as minhas cores e afundava os meus temores ou horrores. Tentava nunca sair dela, mesmo quando me embriagava na realidade frenética das grandes cidades. Exasperava quando abandonava a minha pequena nuvem branca e ficava exposto à delirante marcha dos ponteiros e dos inúmeros rituais cosmopolitas. A minha pequena nuvem nunca me abandonou. A minha pequena nuvem viverá sempre comigo, nem que seja apenas no meu imaginário.

17.5.07

E depois

Tentei ler palavras que não percebia. E depois, colecionei sóis a mergulharem em agitados espelhos de água. E depois, conheci pessoas de outras literaturas, diabruras e roturas. E depois, senti o frio nas grandes montanhas. E depois, senti o calor deitado num calmo relvado verde, acompanhado de uma doce brisa vespertina. E depois, escrevi o E depois. E depois, dormi.

21.9.06

Direito à cólera (être en colère)

Numa conversa de aeroporto, trocava ideias e experiências com uma amiga dum país diferente do meu, duma cultura diferente da minha. A dado momento, enquanto ela partilhava um pouco das suas vivências, referiu algo que me chamou à atenção e que ficou gravado no meu consciente: o direito à cólera. Esta sua afirmação era completamente antagónica ao seu temperamento. Não a conseguia imaginar em cólera. No entanto, passadas mais algumas palavras, percebi na integra o que estava por detrás. Era a ferramenta que ela utilizava para se refugiar da dor e do agastamento provocada por discussões, ilusões e desilusões. Ela evitava os confrontos, seja quais forem. Mas para ela havia excepções. Insisti então nesse ponto. Onde se situavam as fronteiras da confrontação? Qual seria a força motriz que justificaria um comportamento que normalmente está inibido? Para ela, a cólera é uma saída de emergência para a autoestima. Nasce do direito à autoestima. O que me apaixonou nesta ideia foi a premissa de que a cólera (être en colère) é um direito inerente à condição humana, que deve ser ponderadamente utilizado, mas é um direito. Um direito! Talvez devido à minha educação ou à influência da cultura na qual cresci, sempre vi a cólera como algo mau, negativo. Talvez não conseguisse fazer a separação entre cólera e raiva, ou entre cólera e agressividade. Esta nova visão levou-me a reformular alguns conceitos que tinha como absolutos. Apreciei um refinamento dela onde sublinhava que a cólera não é dirigida a ninguem. É apenas uma extravasão, algo que sai de dentro. O meu avião ia partir, ficámos por aqui: todos temos o direito à cólera... de vez em quando.

22.8.06

Pequenos sonhos

No principio deste verão, tal como nos outros, tal como os outros, fiz as malas e parti. Desliguei-me do que faço e do que sou para rumar ao Sul, para o sol, para a gente do sol. O caminho que me levava até aos meus pequenos sonhos ia-se dissolvendo por entre os trilhos milenantes das minhas e das outras planicies. Cruzava-me com multidões vagarozas que tal como eu, migravam em direcção aos seus pequenos sonhos. O ar cheirava a excitação e a azáfamas. Um sentimento de ansiedade, de libertação dum colete de forças. O tempo transcorrido na viagem acelerava enfrentado as leis da relatividade. Tal como os outros, fui para outra terra, para ao pé de outras pessoas. Sei que todas as terras contém pequenos sonhos. Sei que todas as pessoas contém pequenos sonhos. Sei que todos os dias contém pequenos sonhos. Foi por isso que tal como os outros, fiz as malas e parti.

23.1.06

Uma planície e um castelo

Lembro-me que quando era bem pequenino procurava o castelo da minha terra sentado na parte de trás do velho FIAT 124 azul escuro. Debruçava-me sobre as costas do banco de trás e ficava sempre a tentar localizar a imponente torre de menagem que se ergueria sobre qualquer planície. O meu pai desenhava o caminho pelos caminhos da nossa e das outras paisagens. Às vezes, as curvas para aqui e para ali ou umas árvores estúpidas bloqueavam a visão e eu perdia o castelo de vista. Às vezes não o via só por uns instantes, outras vezes ficava sem o ver durante uns minutos valentes mas depois aparecia sempre. Não era mais que um pontinho luminoso erguendo-se sobre qualquer planície, ao longe. Mas via-o sempre! Até da janela do quarto da minha avó noutra terra muito longe eu via o castelo. Naqueles tempos estava certo que não estava a imaginar o castelo, como dizia o meu irmão gozando comigo. Lembro-me que se tinha que olhar para o sítio certo e por isso ele não o conseguia ver. No regresso a casa, assim que fugíamos dos grandes prédios da terra da minha avó, procurava no vidro da frente pelo castelo, o que aborrecia o meu pai. Senta-te! Põe-te quieto! Era o que me dizia depois de ter recebido umas 20 inocentes joelhadas nas costas. Sabia que se apontasse os olhos para o sítio certo, veria o castelo que se ergueria sobre qualquer planicie, mesmo ao longe. Sabia que estava certo e a prova era que a certa altura o castelo começava a aumentar de tamanho e aparecia exactamente na direcção que eu apontava ao meu irmão da janela do quarto da minha avó. Estava certo! Os outros não viam o castelo porque não sabiam para onde olhar. Na terra onde estou agora, noutros reinos, a muitas paisagens de distância, também existe uma planície e um castelo. Esteja onde estiver, verei sempre um pontinho luminoso, desde que olhe na direcção certa. Os outros não vêem porque não sabem para onde olhar.

20.11.05

Maria

Olhava e não te via, Maria.
Procurava mas não te sentia, Maria.
Ria, Maria.

Enchia a maré vazia, Maria.
Sonhava em agonia, Maria.
Ria, Maria.
Fingia, Maria.

Compûs uma melodia, Maria.
Dormi na ardentia, Maria.
Escondi a apatia, Maria.
Ria, Maria.
Fingia, Maria.
Morria, Maria.

Ganhei à ironia, Maria.
Achei a fantasia, Maria.
Perdi a melancolia, Maria.
Rio, Maria.
Não finjo, Maria.
Não morro, Maria.
Vivo contigo.

19.11.05

Pretexto

Procurava um pretexto para escrever. Olhava em meu redor e tentava-me inspirar nos sons, nos cheiros e nas cores. Nada. Depois olhei para as pessoas e para as lembranças. Nada. Passado algum tempo a fustigar-me, percebi que só necessitava de uma coisa para escrever, a vontade. Lancei-me na vastidão das palavras e tricotei um texto. Desta vez não fiz no papel, como é meu hábito, fi-lo na minha velha máquina de escrever com teclado AZERTY. O som de cada frase, de cada passagem de linha embalava-me do mesmo modo como me deixo embalar por um fio de água livre. Escrevia como se escrevesse a mais bonita carta de amor. O som de cada frase, de cada passagem de linha difundia-se pelo meu quarto como se fossem um perfume de mulher ou de uma flôr. As letras que imprimia uma à uma transcendiam o papel e fintavam-me, olhavam-me nos olhos. Sentia-me acompanhado. Cada palavra que escrevia, cada frase, cada ideia, deixava de ser minha. A partir do momento em que as cravava no papel assumiam a sua liberdade e recusavam ser minhas servas. Agora era eu o seu escravo. O som de cada frase, de cada passagem de linha ecoava na minha cabeça mesmo quando não escrevia. Já não precisava de um pretexto.

5.11.05

Mais feliz que todas as coisas

Fechei os olhos. Estava mais feliz que todas as coisas.

20.10.05

O meu cemitério

O meu cemitério não é sombrio nem morbido. O meu cemitério tão pouco é um cinzeiro cheio de cinzas e memórias de cigarros. O meu cemitério é um atrelado com várias divisões. Como todas as pessoas, também não consigo discernir as fronteiras de cada divisão. Trata-se de uma sopa de letras, de rostos e de emoções. No meu cemitério as pessoas não morrem, nem mudam. O meu cemitério é como uma pintura. Em cada côr, cada textura, cada linha, um dia, uma frase, um sonho. No meu cemitério vivem todos aqueles que amei.

7.6.05

Canções

Decidi ir dar um passeio de bicicleta. Nas voltas que dei perdi-me no espaço e no tempo. Estava acompanhado pela música que ouvia nos meus auscutadores. Todos os pedaços de tempo corriam paralelos ao passar das canções. Perdi-me dos outros e perdi-me de mim mesmo. E no entanto ia sozinho. Perdi-me na identidade. Cada árvore que ultrapassava, cada sucalco do caminho de terra que fintava distraia-me. Cada seta que via apontava para uma prisão diferente, para uma fronteira, para um sítio. Continuei a pedalar. Não procurava nada. Apenas me queria fundir com o tom verde da calma que me rodeava. Os pedaços de tempo continuavam a correr paralelos ao passar das canções. Acabei por chegar a uma praia. Na água estavam umas crianças a brincar e uns adultos nadavam quilometros a fio. Como era tarde, o sol escorregava na água e pintava uma paisagem carregada de amarelos torrados. De repente, parei a música mas os pedaços de tempo continuaram a correr paralelos ao passar das canções. Desta vez, ouvia canções nas cores, nos cheiros e na paisagem carregada de amarelos torrados. As canções eram cada vez mais belas, mais simples e mais vivas. Imaginava nas formas que se formavam nos reflexos da água canções. Comparava as pessoas que vivem dentro de mim com canções. Umas mais tristes, outras mais alegres. Já não estava sozinho. Tinha as canções. Agora eram as canções que corriam paralelas aos pedaços de tempo.

6.6.05

A esfera

O lado de dentro e o lado de fora. O movimento e o sedimento. O avarento e o tormento. O invento. O cinzento e o fermento. O movimento e o vento. O sedimento e num momento, o cimento.

9.5.05

É só mais um dia mau

Nem todos os dias são bons. Nem todos os dias são recheados. Nem todos os dias trazem luz, sorrisos desenhados ou côr. Alguns dias têm dor. Ou até não têm nada. Não posso dizer que não são meus. Não os posso vender, trocar ou ignorar. Nem os posso afagar. Desde a virgem aurora dum penhasco à beira-mar até ao apagar dum qualquer candeeiro numa mesinha-de-cabeceira, a insustentável apaziguação parece incrivelmente distante e impossível. É um dos ciclos da trepida natureza humana. A aceitação, a depleção e a rejeição dum dia mau. Ou ao contrário. Nem todos os dias são bons e nem os posso afagar. Numa palavra duma canção ou numa prosa poética alheia encontro um abrigo despido. Num tempo perdido, numa lembrança tórpida, numa gota de água translucida, o minguar da crucificação. O auto-perdoar. A atitude mutada. Amanhã volto a voar, a existir e a refulgir. É só mais um dia mau.

25.4.05

A ironia etílica

A ironia etílica numa lareira de amigos. O transporte das personalidades para horizontes sexuais recheados de libertinas emoções e inibições. Na aurora dum corpo, duma ideia, dum gesto, o despertar para universos não convencionais criticáveis mas naturais. Curiosamente, quiça resultado duma vivência mais fustigada ou reservada, o revelar duma faceta mais envelhecida. A constatação da complicação.

13.3.05

O sorriso encondido

No outro dia cruzei-me com a sorte. Cruzei-me com pouco mais de dez pedaços de tempo, de inocência e de criança. Por entre as frestas dum cabelo negro, num rosto interrompido por raios de sol apagados, numa ninfa de talvez uns 18 anos, ví um sorriso escondido. Ela caminhava em cima da pressa do mundo e ela escondia o seu sorriso. Ela escondia-o das pessoas da rua e dos olhos que não conhecia. Como um reflexo primario, sorrí também. Invejei-a. Ela estava sozinha e sorria. Não sei se ela continuou a sorrir mas eu continuei por mais alguns pedaços de tempo. Tentava hipnotisar outro peão e outro e outro mas não consegui. O meu sorriso diluia-se nos passos que dava e nos olhos que fugiam. Cansado, o meu sorriso escondeu-se, tal como o dela. Adormecido, o meu sorriso abrigou-se dentro de mim e deambulou sem destino nas minhas memórias.

9.3.05

Filosofia extrema

Serei mais complicado ou mais simples?

8.3.05

Poema de mim mesmo (excerto)

"Às vezes chove lá fora. Imagino que o oiço. O meu rosto, ferido de sono, aberto. De quantas formas diferentes terei adormecido? Quem poderia ter evitado deitar-se sobre uma ferida recentemente aberta? Correm cavalos lá fora, e cães e pássaros. Em círculos, como os radares. E eu pertencia a mim mesmo, habitava o meu corpo. Suportava-o. Misturavamo-nos como dois amantes, ele o rio, eu o mar, ele a chama, eu o lume, em combustão espontânea, deitados para dormir, eu à sua espera, ele reconquistando forças, eu conquistando países, percorrendo planícies e desertos, plantando padrões em sonhos oceânicos."

João Oliveira

A Normalização do Ser

Refletindo sobre as regras do jogo, cada vez mais me apercebo da importância da normalização. Assumindo uma curva sinusoidal com diferentes amplitudes para cada peão, a alma e o corpo são fustigados por sucessivas rajadas de pseudo-racionalidade. Nessa curva está projectada toda a água que cai dos olhos e todos os reflexos que vivem num sorriso. Nessa curva sentimos a alma. Nessa curva sentimos o corpo. É então que somos tentados pelo atalho da normalização trilhado pelas marcas da experiência. Afagado e amortecido. Calmo e adormecido. A equalização, a diferenciação e a Normalização do ser. Tudo pelas regras.

4.2.05

A ilha das lembranças

Remo e depois nado. Tento fugir das sinapses da memória, dos fragmentos. Quando comecei, atravessei com cuidado o fragil caminho desenhado na areia. O caminho que nos une de volta à racionalidade. Percorri-o catalisado pelas mais diversas vivências. Uma expansão, diria. Um reflexo do cérebro primitivo, emotivo, aquele sobre o qual temos pouco controlo. Lá, misturo os segundos avulsos numa culinária recheada de sabores e desamores. O fragil caminho desenhado na areia dílui-se aos poucos. Desaparece. O cérebro que apelidamos de racional perde. E a maré sobe. Rodeado de água por todos os lados, estou preso na ilha das lembranças. Mas não sofro. Rodeado de água por todos os lados, remo e depois nado. O delicado equilibrio psicossocial restabele-se mas cada vez mais deslocado para o lado do controlo. Navego sem receios porque já sei para onde ir. Nunca me perco, todos os caminhos vão dar a racionalidade. Às vezes, fico sentado na ilha das lembranças à espera do casamento entre o pôr-do-sol e a maré baixa para poder embriagar nos últimos raios de luz. Num segundo avulso, uma imagem. Penso, remo e depois nado.

28.1.05

O Remanescente

"Aquilo que era remanescente
Já não o é!
Finalizar o eminente.
O fim do que é!

Aqui não já somente, jaz nada de afável.
Ou palavras, mil palavras,
em tom amigável.
Aqui não jaz nada,
do que imagino,
que seja o imaginável!

Pela minha pessoa sou sucumbido.
Até despertar...e errar, e me prostituir,
para ganhar ânimo...
... sejamos falsos.
Que temos competências para tal.
Sejamos fúteis,
sejamos sofríveis
sejamos nós,
porque temos competências para tal!

Critiquem... critiquem,
o que remanesce.
Bocejem... bocejem,
que meu âmago adormece.
Do que era... já nada fica.
Do que é ... só me prejudica.
Deixei para trás tudo o que prevalece.
Embalem... embalem
Que só assim meu coração adormece..."

Guilherme Rebelo

Branco

Acordei abraçado a uma manta quentinha de emoções, de memórias, de sorrisos. Desci. Contemplei um desfile de sensações desconhecidas ao mergulhar no infantário de cristais de neve dançantes. Em cada pedaço de água, uma criança. Quanto mais mais me molhava, mais criança ficava. Em cada pedaço de água, um segundo. Já não invejava a água.

23.1.05

Parar

Depois de aterrar numa existência demora sempre algum tempo até o corpo parar. Diria até que procuro inconscientemente a vertigem duma viagem que faça com que o corpo nunca assente. O corpo aguenta-se, o corpo foi bem feito. O corpo é o que temos para transportar a alma duma viagem para a outra. O corpo é o suporte fisico da alma. O corpo existe, a alma não. A matemática também não existe, mas funciona. A alma revela-se num raciocinio, numa forma desenhada, num gosto, numa interpretação do que é bonito. Quando o corpo pára, a alma pára. Quando a alma pára, ela cobre-se de nostalgias e de pensamentos. Eu não gosto de ficar parado, não gosto de pensar no pensar, não gosto de sorrir e de chorar ao mesmo tempo. Mas não sofro. O corpo não é alimentado por sorrisos, conversas ou impulsos consumistas. Nem por trabalho, sexo ou amor. O corpo é alimentado pelo combate à monotonia, pela motivação quase flagelante, pelo imprevisto. Tal como a água que me provoca inveja, o cansaço da alma acaba por vencer por entre os declives e pára o corpo. Permito-me extrapolar para um nível etéreo e fustigar a ponte entre o corpo e alma. Ir, como o poeta Jean Cocteau foi, e logo depois a minha alma se juntará. A separação do corpo e da alma poderá ser debatida e degolada pelas plateias filosoficas mas a sua realidade, seja de que natureza fôr, não é afectada pelas dúvidas da sua existência. Era como se soubessemos que o purgatório existe e andassem à milénios a fazer essa mesma pergunta. Assim se resolve o paradoxo: assumindo uma natureza fisica e outra natureza supra-fisica. Seria como um grande balde onde se enfiava o que é questionavel, o que não tem existência fisica, o que funciona. Então, é o corpo que não pode parar. O materialismo é uma tentação inevitavel que nasce a jusante da ponte. A simbiose é apenas aparente, destrinçavel e atraente.

16.6.04

Encontro

Num instante, num bocado de vida, as personagens dum teatro assincrono e imprevisivel, onde o mesmo acto não se repete duas vezes, dançam até à exaustão do corpo e da alma. Movimentam-se num plano que por vezes parece surreal, uma realidade alternativa. Cenas do passado, do presente e do futuro díluem-se umas nas outras, misturam-se e confundem-se. De repente, deixei de estar parado. As pessoas que via da janela do quarto do meu amigo já não pareciam ter pressa.

6.6.04

Pensar demais

O meu amigo dizia-me pensas demais. Talvez tivesse razão, ou não. O certo é que também o fazia ao dizer-me aquilo. Todas as pessoas que via pela janela também o faziam. Conseguia vê-lo através do manto cinzento que elas tanto faziam por camuflar com tons vivos, com a rapidez dos gestos tão reflectidos como os meus. Via as pessoas cheias de ideias e pensamentos como se cada um fosse o portador de mais um sofrimento, dum sorriso e de água que cai dos olhos ao mesmo tempo. Uma multidão de bailarinos acrobaticos que a todo o custo evitam pensar no pensar, ou admiti-lo. A diferença estava na pressa que cada um aparentava ter.

24.4.04

Pensar no pensar

Parado, pensava no pensar. Via nas ideias e nas memórias um bailado de vivências a rodopiar sobre si mesmas. Via um caminho, uma saída e um reflexo na água. Procurava a ternura e a compreensão do tempo e o consolo do futuro, do espaço vazio. Vasculhava na emoção um sentido proibido esquecido. Perdia-me dentro de mim e mesmo assim tentava-me esconder da exasperante marcha dos ponteiros dum relogio qualquer. Parado, encontrava na mais pequena porção de tempo um significado, uma razão. Por vezes, perdia-me no escuro das coisas que não se explicam, ou das coisas que não teem explicação. Como um míudo de 5 anos, imaginava água em todos instantes, em todos os bocados de vida. Mesmo sem ver as ondas a dirigirem-se para a praia, mesmo sem as ouvir, mesmo sem as sentir, sabia o seu segredo. O vento, as pessoas, os sons, os dias, todos levam os seus segredos. Não se pode pensar no pensar sem antes parar. Não se pode pensar no pensar sem pensar nos segredos das coisas. Pensar até o pensar ser apenas uma palavra zangada com o seu significado, desligada de sentido, apenas a ser dois sons: pem-sar. Pem-sar. Pem-sar. No reflexo da minha imagem, esboçada nas paredes de tinta-de-areia, reparava que estava parado e como algo que não pudesse controlar, sorria e chorava. Não como se competissem entre si, mas como dois irmãos que brincam juntos. Ficava ao mesmo tempo feliz por estar a chorar e triste por estar a sorrir. As formas desenhadas num rosto que sorri e as gotas de água que caem dos olhos brincavam às escondidas, ao apanha e ao mata. Da janela do quarto do meu amigo, tentava mexer-me. Tentava embriagar-me na pressa do mundo. Eu não gostava de ficar parado, não gostava de pensar no pensar, não gostava de sorrir e de chorar ao mesmo tempo. Mas não sofria. Pensar no pensar retira-nos a capacidade de sofrer. Podemos repetir a palavra sofrer até a gastarmos, até ao ponto onde passa a ser um conceito, uma abstração, mas nunca deixamos de chorar. Pensar no pensar ensina-nos a acolher com um sorriso a água que cai dos olhos quando choramos, ensina-nos a suprimir o sofrimento e a transformá-lo em algo frio, desprovido de emoções, de vida, de sabor.

24.3.04

O tempo perdido

Da janela do quarto do meu amigo via as pessoas na rua a viverem. Algumas tinha o passo apressado como se a morte fosse a punição para o seu atraso. Algumas fingiam ter pressa. Cada um deles transportava a sua pequena historia, cada um transportava os seus horrores, os seus medos. Até as crianças que supostamente deveriam viver num mar imenso de ingenuidade pareciam apressadas. Todo o mundo parecia apressado. E eu, parado. Da janela do quarto do meu amigo via a luz dum domingo a ser interrompida por nuvens que viajavam tranquilas até lado nenhum. As folhas das árvores dançavam sem receios, os automoveis pareciam ter vida própria e pareciam ser eles a decidir o caminho a tomar. Visto de cima, da janela do quarto do meu amigo, via o tempo a passar. Passava nos pequenos pormenores, passava na vontade dos automóveis, passava nas gotas de músicas já muitas vezes admiradas. O tempo passava e eu estava parado. Por vezes, invejava a água da chuva ou outra qualquer água que corresse para o seu destino. Mesmo desprovida de vontades, a água sabia para onde ir, e ia. A água sempre me acolheu. Por vezes, deixava que a água me abraçasse e me levasse para sitios distantes, sitios onde afinal não estava parado. Mas, impotente para lutar contra o tempo, mais cedo ou mais tarde me abandonava e deixava-me de novo parado. A sensação de vida que bebo duma onda a quebrar, ou duns raios de sol timidos alaranjados a compor um pôr-do-sol, apenas pecam por serem finitos. Até a água parada numa neve fofinha, a água que vive no suor dum corpo que dança, a água que vive nas lagrimas falsas de pessoas falsas, até essa água me provoca inveja. Da janela do quarto do meu amigo, conseguia vislumbrar água em todos os instantes, em todos os bocados de vida.