29.6.08

A rapariga das piruetas

Em cada pedaço de tempo que separava os pontos das diferentes equipas, ela dava uma pirueta. Em cada pedaço de tempo onde a vida abrandava, ela dava uma pirueta. Em cada pedaço de tempo desprovido de interesse, ela dava uma pirueta. Decorava o seu rosto com um rasgado sorriso e dava uma pirueta. Até nas fotografias para mais tarde recordar, ela estava a fazer uma pirueta. As suas piruetas eram leves, elegantes e repletas de energia positiva. Cada pirueta coloria com um pouco mais de alegria as expressões cinzentas que enchiam aquele velho ginásio. Não sei em mundo rodopiava aquela rapariga, mas em cada pirueta, em cada sorriso, em cada gesto inocente, perdia-me nas suas voltas. Gostava de saber qual era o seu segredo. Gostava de saber onde ia ela buscar o êxtase para contaminar todos aqueles que se perdiam nas suas voltas. A rapariga das piruetas não parou o dia inteiro. A rapariga das piruetas parecia feliz.

23.6.08

Uma Casa na Escuridão (excerto)

" Na escuridão absoluta, a escuridão absoluta. Na escuridão, o silêncio. O frio. O medo de qualquer coisa desconhecida. E o tempo era o rio lento, negro, frio, que levava consigo o tempo de quem perdeu tudo. Eu sentia que morria devagar. A minha vida, a minha morte, era arrastada por esse rio de vozes que gritavam e escuridão em todos os lugares. Mas o tempo. O tempo. O tempo existiu até ao momento em que a casa se ergueu brilhante na noite do mês da noite. O cheiro a fumo. O som da madeira a crepitar sob as chamas. A casa ardia com chamas que a envolviam, como um farol na noite do mundo. Havia chamas que brilhavam no fundo do corredor. Através da porta aberta, eu via a sua luz reflectida nas paredes brancas. Os gatos, subitamente iluminados, continuavam a mudar de lugar com a mesma lentidão. Alguns continuavam a dormir um sono antigo. As chamas chegaram à porta do meu quarto e envolveram-na. Arderam durante instantes. Os meus olhos viam a porta arder, os tapetes a arder no chão, as vigas as arder no tecto. Os móveis do quarto ardiam. A janela, diante do meu rosto, ardia. Chamas pequenas subiam pelos pés da cama. Os meus olhos viam. (...)"

José Luis Peixoto

20.6.08

As notas das emoções

Sempre gostei muito do si menor, não sei porquê. Se o Bach dizia que a dor de dentes ecoava na sua cabeça um mi maior, eu digo que as canções com mais emoções têm a um determinado momento um si menor.

Da janela da cozinha da minha avó

eu via o castelo. Estou com o Michael e mais uma boa parte da família da minha mãe. Estou à janela porque não posso fumar dentro de casa. Para ver o castelo tinha que olhar para o sítio certo. Continua um livro aos poucos. Um viajante. Uma biografia filosófica. Um espaço livre!


abril de 2003

16.6.08

Melodia

Levava na mochila seis cervejas, um bloco para rabiscos, uma caneta e um maço de cigarros. Na mão esquerda levava a guitarra. Sentia-me particularmente leve e bem comigo mesmo. Sentia-me a melhor pessoa deste mundo, dos outros mundos e dos seus arredores. Sentia-me imune às vicissitudes do desenrolar da vida. Caminhava ao ritmo do meu metronomo interior assíncrono enquanto procurava um poiso para existir no meio do parque da cidade. O dia ofereceu-me uma bela tarde de principio de verão cheia de céu azul, de passaritos a chilrear e duma tranquilidade impar. No meio duma clareira encontrei o meu poiso para existir. Saquei da guitarra e dos meus dedos começar a sair notas atrás de notas. Em paralelo, esboçava umas letras para canções alternadas por rabiscos de arvores, bancos de jardim e detalhes pelos quais me enamorava. Pouco depois, chegavam os meus amigos. Tal como lhes tinha pedido, apenas tinham trazido alegria. Não necessitávamos de mais nada. Passámos a tarde a cantar ao som de notas entrelaçadas, sorrisos vincados e cumplicidades desenhadas. No meio duma clareira encontrei o meu poiso para existir. Tinha descoberto a melodia.