24.3.04

O tempo perdido

Da janela do quarto do meu amigo via as pessoas na rua a viverem. Algumas tinha o passo apressado como se a morte fosse a punição para o seu atraso. Algumas fingiam ter pressa. Cada um deles transportava a sua pequena historia, cada um transportava os seus horrores, os seus medos. Até as crianças que supostamente deveriam viver num mar imenso de ingenuidade pareciam apressadas. Todo o mundo parecia apressado. E eu, parado. Da janela do quarto do meu amigo via a luz dum domingo a ser interrompida por nuvens que viajavam tranquilas até lado nenhum. As folhas das árvores dançavam sem receios, os automoveis pareciam ter vida própria e pareciam ser eles a decidir o caminho a tomar. Visto de cima, da janela do quarto do meu amigo, via o tempo a passar. Passava nos pequenos pormenores, passava na vontade dos automóveis, passava nas gotas de músicas já muitas vezes admiradas. O tempo passava e eu estava parado. Por vezes, invejava a água da chuva ou outra qualquer água que corresse para o seu destino. Mesmo desprovida de vontades, a água sabia para onde ir, e ia. A água sempre me acolheu. Por vezes, deixava que a água me abraçasse e me levasse para sitios distantes, sitios onde afinal não estava parado. Mas, impotente para lutar contra o tempo, mais cedo ou mais tarde me abandonava e deixava-me de novo parado. A sensação de vida que bebo duma onda a quebrar, ou duns raios de sol timidos alaranjados a compor um pôr-do-sol, apenas pecam por serem finitos. Até a água parada numa neve fofinha, a água que vive no suor dum corpo que dança, a água que vive nas lagrimas falsas de pessoas falsas, até essa água me provoca inveja. Da janela do quarto do meu amigo, conseguia vislumbrar água em todos os instantes, em todos os bocados de vida.